Revisão: Davi Dumont
Após seis anos de espera, finalmente podemos dizer: Tears of the Kingdom está entre nós. A maior parte dos leitores, sem dúvida, já deve estar imersa na vastidão de Hyrule presente no sucessor Breath of the Wild, e eu me incluo facilmente aqui. Ainda assim, não podemos nos esquecer daqueles que, contaminados pelos ânimos dos fãs, comentando e compartilhando suas experiências com o jogo, ficam na dúvida se podem encontrar, em Tears of the Kingdom, a porta de entrada para a franquia The Legend of Zelda.
Já respondo aos ansiosos: sim, é possível começar Zelda em Tears of the Kingdom. Seja feliz correndo pelos campos selvagens desse gigantesco mapa, descubra combinações de armas novas, crie veículos e mergulhe nas ilhas à bel prazer. Uma conclusão, no entanto, não é nada sem uma argumentação: logo passo a falar, agora, com os mais temerosos, ainda em dúvida se devem ou não investir no jogo.
Ao longo das últimas semanas, colegas de redação e eu escrevemos a respeito de diversos aspectos do jogo e da franquia, mas acredito que ainda possamos redirecionar o nosso olhar ao “não-fã”. Apesar do excelente texto do Último Sheikah, em que explora a mitologia geral da franquia a partir de Breath of the Wild, gostaria de falar com aqueles que nada ou muito pouco sabem da franquia, buscando resgatar a ideia que comecei a trabalhar no meu texto recente a respeito do legado que Tears of the Kingdom. Nele, comentei de forma sucinta que, por diversas razões, acreditava existir algo de transcendental em Zelda enquanto franquia: uma experiência universal que une todos que já jogaram algo dos títulos, e que será facilmente reconhecível quando o leitor, ainda ingênuo, poder experimentar seu primeiro Zelda.
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Mitologia, Cronologia e outros logos
Imagino que uma grande parte da intimidação da franquia decorra da série de símbolos que a compõem, além das tentativas de organizar quase 40 anos de jogos em uma linha cronológica razoável. Em um primeiro momento, não tenho problema em dizer: esqueça os outros jogos. Não é necessário entender o que é a Triforce, quem é a deusa Hylia ou até mesmo quem é Ganon para se jogar qualquer título da série. E definitivamente, chega a ser recomendado não buscar construir uma linha do tempo sem antes ter jogado um número considerável de títulos da série.
Apenas para ilustrar, a cronologia oficial foi apresentada pela Nintendo apenas no aniversário de 25 anos da série, com o lançamento de Skyward Sword. O título, aliás, foi o único de toda a série que teve como propósito unir os demais jogos, e mesmo este pode ser a primeira experiência de um jogador na franquia, por se tratar do primeiro acontecimento na ordem cronológica. E mesmo com uma certa ordenação imposta pelos idealizadores da franquia, Breath of the Wild criou um novo problema, colocando-se como um reboot da série, afastando-se de forma tão longínqua da cronologia que conhecemos, podendo ser considerado até como uma nova série, tamanha as modificações na estrutura do jogo.
Nesse sentido, os símbolos essenciais não são colocados partindo do princípio que o jogador já os conheça. Em cada título da série, tudo é reapresentado e recontextualizado, fazendo cada jornada começar e terminar em si. Tanto é que, entre tantos jogos, Tears of the Kingdom é apenas o terceiro título criado a partir de seu antecessor (assim como Majora’s Mask surge de Ocarina of Time e Spirit Tracks de Phantom Hourglass).
Em suma: cada jornada é independente da outra, e mesmo os elementos que são carregados de um a outro são sempre reapresentados, em uma dinâmica muito simpática ao novo jogador. A cronologia, nesse sentido, aparece como uma tentativa de se organizar de forma lógica elementos muito distintos, mas não é interpretação única para os fatos. Agora, devo dizer que certos elementos são, sim, bastante relevantes de serem levados em consideração, especialmente em relação à psicologia e à filosofia da série. No ensaio Embodying the virtual hero (ERICKSON, Jonathan. The pshycology of Zelda. Organização: BEAN, Anthony M. BenBella Books, Inc. Dallas, TX, 2019), Erickson demonstra, a partir da projeção Jungiana, que Link é, essencialmente, um elo entre jogador e jogo: um avatar capaz de receber a projeção do jogador e que, ao término da aventura, retorna ao jogador parte da projeção, gerando aprendizado. Por mais que todos os jogos em essência possam se enquadrar na descrição, em Zelda a projeção não é leviana ou alienante: Link sempre é um herói que carrega a coragem, sendo uma personagem que, já no design, questiona seu gênero, amplificando o potencial de projeção, mas que também é criado com o claro intuito de ensinar, pela vivência, a superação.
Aliás, pelo caráter dialético da serie, em que cada jogo liga conceitos antagônicos, Link em si também se projeta no outro, estendendo o jogador no campo digital. Sua determinação em perseverar, em muitos níveis, cria um avatar muito alinhado à essência do jogar, e a forma como esse elemento se preserva em todos os jogos é surpreendente. Esse elo é tão forte que nos permite vivenciar uma amplitude de sentimentos: o luto pungente de Majora’s Mask, em que cada fase representa uma etapa do estágio do luto; o crescer, tão inerente à Ocarina of Time, que tão bem representa o peso das responsabilidades; a desesperança de Twilight Princess, com um lamento que nos acompanha a cada passo; até chegarmos ao estado de contemplação de Breath of the Wild, que mais parece uma ampla e extensa reflexão sobre o ser. Concluo: não espere encontrar em Tears of the Kingdom as mesmas experiências encontradas em demais títulos, mas tenha certeza que encontrarás uma ligação tão profunda e transformadora aqui quanto em qualquer outro Zelda.

Um sucessor que não precisa de antecessor
Ainda acredito que certos leitores possam estar receosos em jogar Tears of the Kingdom sem ao menos antes jogar Breath of the Wild. Como disse, sendo um reboot da série, este separa a franquia em dois sem dó. Porém, e se Tears of the Kingdom for completamente vinculado à história de seu antecessor?
Na série de entrevistas com a equipe responsável pelo desenvolvimento de Tears of the Kingdom publicada pela Nintendo, Aonuma nos tranquiliza: apesar do retorno de uma série de personagens, o jogo conta com um menu especial em que jogadores podem ler os perfis dos mesmos, guiando o novato e fazendo relembrar os veteranos. Ainda falando um pouco sobre as entrevistas, foi destacado que a “mão” representa um importante ícone em Tears: não apenas guiando o jogador, mas principalmente unindo-o ao universo do jogo, fortalecendo a tese de projeção. Além disso, elementos primordiais à série, como as dungeons e as músicas icônicas da franquia parecem de fato estar de volta, como diversas análises apontaram na quinta, dia 11. Sendo assim, o jogo parece não apenas ser um título amigável, mas uma genuína porta de entrada para também se conhecer o passado da série.
Ainda assim, vale destacar um ponto quanto à narrativa de Breath of the Wild. A história do derradeiro título de Wii U é essencialmente simples, e não há sequer uma grande lore para ser conhecida (exceto, é claro, os vários anos de especulações de fãs na internet). Em apenas sete minutos, a Nintendo fez um competente resumo de todos os acontecimentos, que acredito ser mais que o suficiente para contextualizar o início do lançamento.
Porém, volto a recomendar nosso texto “The Legend of Zelda: Uma jornada épica por Hyrule“. Nele, Último Sheikah destrincha com atenção cada detalhe da trama anterior, contextualizando-a com a mitologia de outros jogos.
Agora, acredito que não há mais nada necessário a ser dito nesse sentido. Conheça a franquia por qualquer título de sua preferência, desde que esteja aberto a tornar-se um com Hyrule. E, quando faze-lo, espero que Zelda seja tão transformador como foi comigo e para tantos outros fãs dessa incrível franquia.
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