Primeiramente, este texto é apenas algo que acabei pensando em produzir após ter finalizado ambos Chrono Cross e RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – e lido um pouco mais sobre o desenvolvimento de ambos os games. Incentivado por uma conversa que tive com algumas pessoas, eu pensei em produzir algo comentando sobre a narrativa da série Chrono.
Algo que achei muito interessante é a existência peculiar de RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – , sua influência na criação de Chrono Cross, e, por fim, Masato Kato. É raro vê um escritor dedicar tantas formas diferentes de mídias para explicar algo que fãs podem ter deixado passar despercebidos ao jogar Chrono Trigger. Como alguém que aprecia acima de tudo uma boa narrativa, a vontade de Kato de explicar o destino de uma NPC de Chrono Trigger foi algo que me atraiu em produzir este texto.
Dito isso, obviamente que o texto está repleto de SPOILER sobre os três títulos da saga Chrono. Se você ainda não jogou nenhum deles, ou falta jogar algum, volte mais tarde aqui. Para aqueles que ficaram, bem, vamos falar um pouco sobre a narrativa que evolui da saga Chrono e tentar tirar um pouco do peso negativo que Chrono Cross possui.
Leia nossa análise:
Uma introdução a Chrono

A franquia Chrono é bastante peculiar quando o quesito é narrativa. Chrono Trigger possui uma história direta que envolve viagem no tempo e apresenta uma série de eventos lineares que culminam na batalha final entre o grupo de jovens heróis viajantes com a criatura de outro mundo, Lavos.
A narrativa de Chrono Trigger começa com o herói Chrono despertando para mais um dia comum e termina com a derrota do parasita. Entre os dois pontos, porém, uma série de outras sub-tramas acontecem, algumas envolvem os outros personagens do grupo, assim como um cast diverso de NPCs, com alguns se tornando mais memoráveis que outros.

É comum em um game, assim como em qualquer outra mídia de entretenimento, que a narrativa seja iniciada e finalizada dentro do seu produto inicial. Salvo são os casos em que o uso do assim chamado cliffhanger, é utilizado no final para gerar interesse em uma possível sequência ou atiçar a curiosidade dos fãs.
Chrono Trigger inicia e termina sua narrativa dentro de seu próprio jogo. O time finalizou seu trabalho e partiu para outros projetos. Os cinco Aces responsáveis pelo game voltaram a trabalhar em sequências para suas séries de sucesso. Masato Kato, responsável por escrever uma parte da narrativa de Chrono Trigger, porém, ainda tinha o clássico JRPG em sua mente quando ele começou a produzir o seu próximo título dentro da Square.

Antes de trabalhar na gigante dos RPGs japoneses, Masato Kato fazia parte da Tecmo. Inicialmente responsável pela animação de sprites dos títulos da série Captain Tsubasa, Kato ganhou relevância ao ser um dos responsáveis pelas cutscenes da franquia NINJA GAIDEN – os jogos de ação 2D – que decidiu dar um foco maior em sua narrativa para separá-los dos rivais.
Ao ser contratado pela Square, o primeiro trabalho de Kato foi justamente em Chrono Trigger. Apesar de ter sido responsável apenas por uma parte específica da história do game, os eventos de história que acontecem em 12,000 B.C, Masato sempre fez questão de dizer em entrevistas que a parte final da produção de Chrono Trigger foi um pesadelo para ele e que muito dos sentimentos negativos que surgiram em sua mente durante tal momento foram transferidos para o seu próximo título.

Tal título foi RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – , uma aventura que apresenta os jogadores ao trio de ladrões, Serge, Kid e Gil. Os três invadem uma mansão em busca de um lendário tesouro conhecido como Frozen Flame e a narrativa inteira é focada nesta missão e o jogador é dado diversas escolhas ao longo da jornada para decidir o futuro do grupo.
RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – foi produzido em três meses e lançado apenas no Japão para o acessório Satellaview do SFC. Durante o desenvolvimento do título, Kato percebeu que a narrativa de Trigger ainda estava incompleta, deixando algumas pontas soltas que podiam ser finalizadas em sequências ou outros projetos. Para o escritor, a personagem Schala, uma NPC importante que desaparecia depois de uma certa parte da história do RPG, ainda precisava ter seu destino final confirmado. Tendo isso em mente, Kato decidiu finalizar RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – com a revelação de que Kid era Schala e Gil era seu irmão, Magus, transformando assim o título em um spin-off de Chrono Trigger.
Contudo, o resultado final não acabou exatamente como Kato imaginava. Apesar de ser uma bom título, RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – sempre foi visto como algo que não era bom o bastante na visão de seu criador. Por isso, Masato desejava uma nova chance de poder reescrever a história novamente. Tal chance aconteceu anos mais tarde com o início da produção de Chrono Cross.
Enquanto a narrativa de RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – serviu como uma base para o que estaria presente em Cross, a história acabou evoluindo para além do spin-off. Por estar utilizando o nome Chrono, Kato quis que o enredo do novo título pudesse ser um reflexo do apresentado no seu predecessor e a forma para que isso pudesse acontecer foi a decisão de perseguir temas diferentes de Chrono Trigger.
Uma evolução narrativa pela linha do tempo

Chrono Trigger é sobre tempo. É uma típica história de um jovem que se torna um herói que salva o mundo junto com seus amigos. O principal elemento que governa sua narrativa é a viagem no tempo, com os protagonistas atravessando décadas e milênios em busca de completar sua missão.
Chrono Cross é o oposto, descartando a jornada pelo tempo por uma viagem entre dimensões. Ainda é uma típica história de um jovem que se torna um herói que salva o mundo junto com seus amigos, contudo, a narrativa decide focar em algo a mais do que salvar o planeta da ameaça de Lavos. Em Chrono Cross, o protagonista Serge está em uma jornada em busca de uma resposta: Quem ele é realmente é?
A principal premissa da narrativa de Chrono Cross, é a existência de duas dimensões diferentes, com a principal diferença entre eles sendo o destino de Serge. Em um universo, o garoto está vivo, enquanto no outro ele faleceu 10 anos antes da aventura começar. A existência do protagonista implica em grandes mudanças que afetam a linha do tempo como um todo e Serge é considerado o catalisador para o fim do mundo.

A narrativa de Chrono Cross é bastante interessante quando ela decide simplesmente apostar em seus próprios mistérios. O enredo sofre com problemas de pacing óbvios, com lore dumps acontecendo no final do jogo para tentar amarrar tudo junto. Por uma boa parte quando a história foca em Serge descobrindo mais sobre sua existência, assim como toda a parte envolvendo os dragões e humanidade, a narrativa é peculiar e interessante.
Ambos os títulos da saga Chrono agem no princípio de que cada possibilidade gera um futuro diferente. Em Trigger isso se dá na forma de timelines diferentes, enquanto Chrono Cross segue a ideia de dimensões paralelas. Essa distinção para aproximar a mesma ideia com resultados diferentes é um dos principais paralelos narrativos que podemos encontrar entre os games.
Entretanto, mesmo que o objetivo não seja transformar o game em um “Chrono Trigger 2”, Kato e seu time sentiram a necessidade de ligar as duas narrativas. Assim como foi com RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – , Schala se tornou o ponto principal da ligação entre os games, contudo, Chrono Cross faz diversas referências menores aos eventos de Chrono Trigger ao longo da jornada de Serge, trazendo outros personagens do clássico de SNES para sua narrativa. Entretanto, o que mais pode afetar os fãs do original e ser visto como algo negativo é a forma como o jogo trata os heróis de seu título anterior.
Heróis em decadência

Ao produzir uma sequência para uma narrativa com um novo protagonista, é comum que os heróis anteriores ou estejam presentes na figura de mentor, ou sejam ignorados completamente. Alguns casos em especial também acontecem, onde o personagem que acompanhamos por uma longa jornada retorna em uma forma mais degradante, sendo morto para servir como uma forma de mostrar o poder da nova ameaça.
Muitos jogos utilizam a última opção de narrativa como uma forma de motivar o jogador, usando sua ligação emocional com o protagonista anterior. Em alguns casos, porém, o herói acaba sendo derrotado antes mesmo da história se iniciar, em um forma que pode ser considerada um desdém com o legado original.
Chrono Cross utiliza tal elemento narrativo para explicar a falta da presença dos heróis de Chrono Trigger em sua história. Chrono e Marle são dados como mortos, assim como Lucca, mas a cientista possui uma presença maior na aventura do que seus amigos, tendo sido a responsável por cuidar de Kid, além de ajudar no plano de resgatar Schala do seu destino cruel.

Os heróis antigos são apresentados como meras lembranças do passado que odeiam a atual narrativa. Além disso, em uma carta que é possível adquirir, Lucca exibe uma personalidade que se sente culpada pelos resultados do final de Trigger, com medo do futuro e até questionando se o que o grupo original fez, foi o certo.
Apesar de muitos fãs considerarem isso como um assassinato de personalidades, Chrono Cross apenas segue uma tendência que certas sequências de jogos antigos faziam em sua época. A série Tales of é outro exemplo, com os poucos jogos que servem de sequência um para o outro, destruindo a imagem construída dos heróis originais para fazer o novo time, ou personagens, parecem um pouco mais importantes.
Cross certamente abusa dos personagens anteriores que ainda aparecem aqui. Além do medo de Lucca com o resultado da ação de seus amigos na linha do tempo, temos também a destruição de Robo, a lendária espada Masamune sendo uma arma de destruição e a queda do reino de Garuda. São momentos que funcionam para causar um choque aos fãs mais nostálgicos da aventura de SNES, mas que certamente acabou causando um efeito oposto.

Interessantemente, o mesmo não pode ser dito quando o assunto é Schala, a responsável pela existência não apenas de Chrono Cross como de RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – . Apesar de sua presença continuar sendo mínima neste título, é notável que Kato elevou a NPC a um patamar mais alto e a tratou com o máximo de respeito possível. Ao final da aventura, ela é o objetivo que muitos dos personagens visam buscar. Existe todo um plano para salvá-la das garras do terrível Lavos, que aqui passou de um parasita para uma criatura que podia evoluir para destruir toda a linha do tempo.
A revelação nos momentos finais da narrativa de Schala e sua trágica história culmina em uma série de conversas entre personagens informando múltiplos elementos narrativos que poderiam ter sido explicados melhor ao longo do enredo. Mas assim como foi o caso em RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – , a revelação apenas na parte final da jornada tenta causar impacto ao jogador e interligar os títulos.
Radical Dreamers: A jóia que completa o quebra-cabeça

Um dos elementos mais interessantes quando falamos da narrativa da série Chrono, é a forma como Kato utilizou outros meios para expandir o universo. É comum nos dias atuais, vemos jogos recebendo adaptações em outras mídias, ou em alguns casos mais específicos, continuações em outros formatos visuais. RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – , contudo, é um interessante produto narrativo para continuar o enredo de um RPG.
Qualquer jogador que não tenha experimentado Chrono Cross irá considerar que RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – é uma IP totalmente diferente da franquia Chrono. Até a revelação no final de que Kid é Schala e Gil é Magus, nada no game liga-o a Chrono Trigger. As imagens são desenhadas com um tipo de fantasia medieval em mente, as batalhas acontecem como se fossem pessoas normais enfrentando criaturas e o enredo é simplesmente sobre um trio de ladrões querendo roubar uma joia rara.

Bem diferente do que veríamos em Chrono Cross, RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – é escrito como uma narrativa mais simples e direta. Muito do enredo do game é mais pessoal e em certos momentos fica mesmo parecendo quase um game de survival horror onde um erro realizado pelo herói, Serge, pode acabar custando-lhe a vida. Não existem viagens no tempo ou dimensões alternativas e apenas no final a narrativa insere elementos mais complicados.
O mais curioso de RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – é o quão canônico o game é para a narrativa geral da saga Trigger e como ele serve de ponto de partida para Chrono Cross. RD é considerado um spin-off, ao mesmo tempo que também pode ser contado como uma outra possibilidade aos eventos gerais da saga. O título de PS1 possui uma menção a aventura e é implicado que ela é um universo paralelo que conta com seu próprio Serge, Kid e Magil. Cross em si utiliza o game como sua base narrativa, reutilizando os personagens presentes e a jóia Frozen Flame como pilares para se basear.
RRADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – pode ser considerado o ponto de transição entre Chrono Trigger e Chrono Cross narrativamente falando. Apesar da ligação com o título de SNES ser mínima, o game de Satellaview interliga a jornada original ao mesmo tempo que inclui novos elementos que fazem a transição para o que veríamos em Chrono Cross de forma natural.
Um problema e uma solução meia boca

Curiosamente, um dos elementos de RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – que acabou não transitando para a narrativa de Chrono Cross, acabou por ser um dos seus pontos mais importantes, Magus. O personagem, que começa como vilão em Chrono Trigger e depois vira um poderoso aliado, é talvez um dos mais queridos dos fãs do original e é irmão de Schala, tendo uma dedicação pela jovem que beira o obsessivo. A revelação de que Magil é Magus vem quase sem surpresas após a origem de Kid ser revelada, e uma parte importante de seu arco é a busca incansável por sua irmã.
Magus quase se fez presente em Chrono Cross. Originalmente ele teria um papel similar ao que teve em RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – . Um mago misterioso que viajaria com o grupo, falava pouco e utilizava uma máscara. Enquanto em RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – seu nome era Magil, em Cross, ele seria conhecido como Guile.
Quando foi decidido incluir múltiplos personagens recrutáveis em Chrono Cross, os desenvolvedores perceberam que sua história não seria contada da forma correta. Assim, Guile sofreu uma grande mudança, se tornando um novo personagem e a ligação com Magus foi cortada. Ainda assim, o novo herói possuía um pouco do mistério de sua personalidade original e muitos fãs ainda o consideravam ser a mesma pessoa. Schala também perdeu qualquer ligação com o seu irmão e ao ser resgatada de Lavos decidia se reunir somente com Serge.
Talvez ter cortado a ligação com Magus foi uma decisão da qual os desenvolvedores se arrependeram profundamente nos anos que se seguiram. Isso porque, quando Chrono Trigger foi lançado para o Nintendo DS, um novo final podia ser habilitado e nele, Magus perdia a memória e decidia perseguir um mistério com uma nova identidade.

Mas se isso apenas significava uma implicação, os responsáveis por Chrono Cross: The Radical Dreamers Edition decidiram assumir o erro. Completando ambos os títulos presentes na coletânea e assistindo aos créditos gerais, uma cena especial acontece, nela, Guile está mencionando como sua longa jornada chega ao fim e como ele finalmente poderá remover sua máscara e relembrar o passado, culminando com a revelação de que ele é Magus.
Enquanto tal revelação não altera em nada a narrativa de Chrono Cross, a forma que ela foi realizada parece bastante como uma correção apressada a um erro de 20 anos atrás. Seria muito mais interessante ter alterado certas partes do game para refletir a mudança, mas por ser apenas um fanservice aos fãs mais leais, e o estado da coletânea em si, é possível imaginar que a Square Enix não quis gastar mais tempo do que o necessário para corrigir problemas narrativos de um título que apenas um nicho específico irá querer jogar.
Por fim…

A franquia Chrono é certamente uma das mais interessantes do mundo dos JRPGs. Tendo sido criado por um time de estrelas, o primeiro game foi um título fantástico que é querido por muitos até os dias atuais. Enquanto Chrono Cross possui seus fãs, é inegável que sua maior contribuição a série tenha sido sua apresentação e sistema de batalha experimental. Ainda assim, a forma como ele evoluiu a narrativa e conseguiu criar uma história que consegue ficar de pé sem precisar apostar na nostalgia pelo original é de se admirar. RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – também merece o reconhecimento por servir como o experimento para o que Masato Kato pudesse fazer com o enredo que ele gostaria de seguir.
A história da série pode ter seus altos e baixos, mas certamente vale a pena dar uma conferida nos três títulos. Com Chrono Trigger disponível no Nintendo DS, e Chrono Cross e RADICAL DREAMERS – Le Trésor Interdit – no Nintendo Switch, os fãs nintendistas podem conhecer as nuances narrativas de uma das mais interessantes franquias esquecidas dos JRPGs.

