
O século XX marcou a consolidação da sociedade do consumo. Esse processo foi reforçado em grande medida através da imprensa. A circulação de jornais nos Estados Unidos, por exemplo, cresceu muito mais rápido que a população, dobrando entre 1920 e 1950 (HOBSBAWM, p. 193). Mas, na maior parte do mundo – por exigir alfabetização – era algo que atingia a um pequeno círculo das elites. Nesse sentido, o desenvolvimento de novos aparatos tecnológicos, como o rádio e a TV, que passaram a invadir o espaço doméstico, potencializaram os discursos ideológicos liberais.
Há muito tempo, portanto, a imprensa, o rádio e a TV atuam como mantenedores das bases do sistema político e econômico surgido das revoluções burguesas (Industrial e Francesa) do século XVIII. Esses mecanismos, segundo Gérard Vincent, servem para entorpecer a percepção de classes. Geralmente, para facilitar o acesso a eles, é construída uma sociedade de crédito. Assim, “as prestações mensais correm o risco de diminuir a combatividade operária”, afastando e sufocando qualquer movimento que possa levar as pessoas para as ruas. Trata-se da difusão da politica de bem estar social, que associa o consumo à ideia de felicidade, esvaziando com isso as lutas de classe. (VINCENT, P. 412)
O papel do entretenimento

Mascarados pela ideia de entretenimento, a absorção desses aparatos pela indústria cultural nos entorpecem e tiram nosso poder de crítica. Segundo Theodor Adorno, divertir significa estar de acordo, “significa que não devemos pensar, que devemos esquecer a dor mesmo onde ela se mostra” (ADORNO, p. 41). Se, segundo Karl Marx, na sociedade burguesa a força de trabalho se transformou em mercadoria, o nosso tempo livre deve ser visto como o momento onde essa realidade deve ser esquecida, mediada, muitas das vezes, pelos veículos de comunicação de massa.
Todo discurso difundido e regulado por estas tecnologias servem, direta ou indiretamente, a um propósito. A ideologia vigente é sempre de quem detém a hegemonia política e econômica. Nos mais jovens, as animações – por muito tempo – tinham (e ainda têm) essa função. É uma emulação dos papéis que se esperam que cada um – menino ou menina – tenha na sociedade. Para além, eles têm o efeito de “martelar em todos os cérebros a antiga verdade de que o mau trato contínuo, o esfacelamento de toda resistência individual, é a condição da vida nessa sociedade. Pato Donald mostra nos desenhos animados como os infelizes são espancados na realidade, para que os espectadores se habituem com o procedimento” (ADORNO, p. 33).
Novas ferramentas de controle

Na segunda metade do século XX uma nova tecnologia – fruto da Guerra Fria – passou a reforçar ainda mais esse mecanismo de controle político e social: os videogames. Vendidos, inicialmente, como brinquedos, foram primeiramente crianças e adolescentes os públicos alvos dessa nova ferramenta criada em prol do entretenimento. Os videogames os tornaram mais do que meros ouvintes, leitores ou espectadores, eles passaram a ser os protagonistas das histórias. É bom frisar que os discursos difundidos nesse tipo de mídia, devido à interatividade presente, é muito maior. Crianças e adultos passaram a ser abraçados pela ideologia liberal burguesa em seu ócio. E nesse momento, como já dito, não problematizamos a vida e a sociedade.
Essa associação dos videogames aos brinquedos foi construída pela indústria. Com o tempo, no entanto, ela foi sofrendo mudanças, se adaptando ao próprio crescimento de seu público. Conforme foi se transformando num mercado bilionário o público alvo passou a ser mais abrangente e menos sexista. Trata-se de uma prática que busca atrair consumidores de todos os tipos e idades de forma indiscriminada. Algumas das vezes há uma adaptação narrativa. A Sony, em seus jogos faz muito isso. Quem nunca leu ou ouviu alguém dizer que The Last of Us, God of War ou Death Stranding são títulos com uma pegada mais “adulta”? Outras vezes, o discurso assume uma veia emocional, na medida em que atua trazendo à luz elementos nostálgicos de nossa infância. É o que a Nintendo faz com maestria em seus títulos. A ideia no final é manter e ampliar a base construída ao longo dos mais de quarenta anos de indústria de jogos eletrônicos.
O gamer reacionário

Como efeito, há uma extensão da infância. Benjamin Barber, em Consumido: o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos, acredita que a sociedade de consumo passou a produzir adultos infantilizados, o que ele chama de kidult. Esse ethos infantilista nos afasta da ideia de servir a sociedade na medida em que nos debruçamos sobre o hedonismo representado pelo prazer imediato do consumo impulsivo daquilo que remonta a nossa infância. O rótulo de “consumidor” passa a ser mais importante e relevante do que o de “cidadão”. Como resultado, vemos surgir o gamer reacionário. Aquele que de tão afeiçoado pelo produto que o entretém, dá a ele traços humanos e ataca qualquer um que pense diferente, se colocando como uma espécie de vendedor agressivo do mesmo; ou aquele que condena ferramentas de inclusão e acessibilidade, como a localização dos jogos para o nosso idioma (quem mandou não saber inglês?). Temos ainda aqueles que, direta ou indiretamente, tentam esvaziar quaisquer discursos políticos dos jogos (como pautas identitárias), ignorando os elementos ideológicos que alienam o jogador do contexto sócio-político do qual está inserido.
Quando consumir passa a ser mais relevante do que qualquer coisa, temas importantes para a nossa sociedade são deixados de lado. Como já mencionado, a ideia de servir a sociedade é substituída pela ideia de servir a si mesmo. Algumas vezes parece que a programação binária e a narrativa maniqueísta presente em alguns jogos fincam raízes no imaginário fazendo com que o gamer reacionário tenha sempre uma solução simples (senão simplória) acerca da realidade. São os mesmos que, diante de uma taxa de desemprego e inflação elevada, ou seja, de uma diminuição do poder de compra e desvalorização da moeda, comemoram a redução dos impostos dos videogames. As manifestações públicas são sempre em causa própria. Nesse sentido, condutas empáticas com problemas que não os seus são deletadas em prol do prazer que o jogo lhe proporciona.
Um paradoxo ambulante
O gamer reacionário, além de misógino (é bom salientar), possui uma visão alienada e superficial do mundo. Ele cresceu, mas como no complexo de Peter Pan, mantém a mesma visão de mundo de sua infância. Acredita conhecer todo o oceano só nadando em sua superfície. Essa transformação do cidadão em consumidor encontra eco, portanto, de forma bastante óbvia, na indústria de jogos eletrônicos. Ela normaliza preconceitos, além de servir como mantenedora – por ser braço da indústria cultural – da ordem política e econômica vigente. Negar isso é contribuir para a continuidade das contradições de nossa sociedade. O que devemos fazer, portanto, é entender que há nos jogos e na mídia como um todo uma função política. As classes dominantes através deles nos fazem crer que consumo e felicidade estão diretamente associados, desviando nossa atenção de problemas reais que afligem nossas vidas. O gamer reacionário é um paradoxo ambulante que, por ser consumido pelo mesmo produto que o entretém, torna-se arauto de uma sociedade que eterniza as desigualdades.
ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e sociedade. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX – 1914-1991. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
VICENT, Gérard. “Ser Comunista? Uma maneira de ser” In: PROST, Antônio; VINCENT, Gérard (Org). História da Vida Privada, vol 5: Da Primeira Guerra a Nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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