
Esta é a primeira parte de uma trilogia de matérias sobre a influente tecnologia HD-2D da Square Enix. Ou seja, uma série de matérias sobre uma técnica audiovisual desenvolvida pela Divisão 11 — apelidada de “Team Asano” —, a qual se encontra hoje integrada na Unidade II da empresa. Na trilogia “A arte e a ciência por trás da tecnologia HD-2D”, este que vos escreve, Vítor “Vivi” Costa, tem por objetivo explicar como surgiu essa técnica artística e gráfica, dando um contexto histórico para seu desenvolvimento e desdobramento na indústria de videogames.
Hoje vamos conhecer um pouco sobre a história dos elementos que, juntos, formam o que chamamos de “HD-2D” e criam uma experiência única que é ao mesmo tempo nostálgica e moderna, e é capaz tanto de criar experiências novas e extemporâneas para nossa geração de consoles e também revitalizar JRPGs clássicos sem tirar-lhes a essência artística e de gameplay que fascina aos RPGistas amantes da era 16-bits. Embora esses elementos tenham se amalgamado pela primeira vez em Octopath Traveler, todos eles já existiam, mas em projetos dispersos, e este texto tratará de amarrá-los e examiná-los em uma narrativa histórica. Mas, antes, como sou um colaborador intruso (escritor convidado) aqui no NintendoBoy, convém primeiramente me apresentar.
Vítor “Vivi” Costa ou thegamelogicist, sou basicamente alguém com formação em História, Filosofia e Lógica que, como hooby, gosta muito de literatura, música, cinema e jogos com maior apelo artístico e/ou narrativo e mecânicas de stealth, puzzle, estratégia e, principalmente, RPG. Sou também um fã de longa data da Square Enix, e essa é uma das razões de eu ter sido convidado para co-escrever essa trilogia de matérias. Faço parte da Equipe Gato, que traduz jogos da série The World Ends with You, escrevo análises e outras coisas sobre jogos no Nintendo Blast e Game Blast (ambos em português), e escrevo também sobre filosofia e game design na SUPERJUMP (em inglês), alguns desses textos estando também na plataforma Medium. Para falar dessas coisas, também tenho um podcast: @metaquestcast (Twitter). E agradeço caso se interesse em dar uma olhadinha nos meus projetos.

A tecnologia HD-2D
Uma grande contribuição para a ascensão de um dos principais estúdios da Square Enix e para a revitalização do interesse em JRPGs clássicos, a tecnologia HD-2D, apesar de modesta em muitos sentidos, acabou se tornando uma das mais importantes invenções em audiovisual nos últimos anos para o mercado de videogames. Tal empreendimento tem se mostrado muito promissor, útil e influente, tanto em alguns projetos de médio orçamento — os AA — que usam diretamente essa tecnologia em tudo que tem a oferecer quanto em muitos projetos menores independentes que são influenciados parcialmente por seus métodos técnicos e de direção de arte para dar um ar mais moderno e vibrante às experiências visuais em pixel art.
Nesta matéria, vamos conhecer um pouco sobre a evolução técnica e artística que nos levou até o HD-2D. Mas, para isso, primeiro vamos dar uma caracterização básica de “HD-2D”. De modo amplo, podemos identificar um jogo com tecnologia HD-2D a partir dos seguintes aspectos combinados:
- Um tipo de hibridismo 2D-3D: Gráfico em alta resolução com design clássico de sprites para personagens e mistura de objetos 2D e 3D em cenário bem detalhado em ambiente 3D;
- Alternância de câmera e profundidade: Perspectiva e alternância de câmera fixa (e possivelmente com câmera rotativa);
- Um estilo de direção de arte: Sobreposição de diferentes estilos de pixel art acrescidos de efeitos visuais modernos para as animações, tais como de iluminação de alta definição, Lens Flare, desfoque (Blur) e efeitos de partícula (Particle Effects);
- Um tipo de design de som e estilo musical: Dublagem (Voice Acting), estilo de composição que mescla uma base orquestral e robusta com temas musicais fáceis de entender, à moda 16-bits, e alta qualidade sonora de música e efeitos sonoros.
Todos esses itens combinados dão vida a uma experiência ao mesmo tempo imersiva e nostálgica, cinematográfica e lúdica, moderna e clássica… trata-se de uma “união de horizontes” de expectativa, para usar a clássica metáfora de Gadamer acerca do fenômeno da interpretação. Desse modo, o HD-2D possibilita tanto experiências autênticas — como Triangle Strategy (que eu e Gabe analisamos) —, mas com reminiscências clássicas, quanto experiências de re-apresentação de jogos clássicos — como Live A Live e Dragon Quest III —, mas com o brilho dos jogos modernos.


Os precursores da tecnologia HD-2D
Comumente considera-se Octopath Traveler (2018) o primeiro jogo a usar a tecnologia HD-2D. Esse título foi originalmente desenvolvido e publicado pela Square Enix para Nintendo Switch, sob os cuidados de Tomoya Asano e sua equipe (Business Division 11, integrada na atual Unidade II, liderada por Yuu Miyake). Como o nome sugere, o Team Asano é encabeçado por Tomoya Asano, o qual já está a mais de duas décadas na empresa, e trabalhou em vários projetos, com IPs clássicas de JRPG da Square e da Enix, como Dragon Quest, Final Fantasy, Star Ocean e Valkyrie, mas que também desenvolveu IPs próprias, como Bravely Default e Octopath Traveler.
Contudo, o que chamamos de HD-2D não surgiu de um dia para o outro — como sugere o próprio currículo de Asano —, mas sim foi o resultado de um longo processo de experimentações que remonta desde o final da era 16-bits nas áreas de direção de arte, modelagem 3D e animação. Tais experimentações visavam a criar experiências híbridas entre o 2D e o 3D e/ou simplesmente tornar mais moderno, dinâmico e suculento o estilo 2D clássico dos JRPGs. Como todo processo histórico, é difícil demarcar um ponto de início, pois quase todo fenômeno histórico é gradual e sempre há algo anterior a que se possa remeter alguma influência. Contudo, tomaremos como ponto de partida um grande clássico, que, dentro da Square, foi de grande importância nesse aspecto.

Publicado pela Nintendo e desenvolvido pela Square, Super Mario RPG: Legend of the Seven (1996) foi um RPG graficamente muito ambicioso para um jogo da 4ª geração de consoles, e foi um dos sete únicos jogos de SNES (fora do Japão) a usar o chip Nintendo AS-1, que concedia um microprocessador adicional, dando maior velocidade de clock; acesso mais rápido à memória RAM; armazenamento de dados e compactação, entre outros recursos.
Graças à arte de Kiyofumi Kato e Yuko Hatae e à coordenação dos gráficos feita por Hideo Minaba, um grande diferencial da Super Mario RPG estava na forma como ele misturava muito bem objetos 2D com elementos em 3D, imagens pré-renderizadas com pixel art, e fornecia uma exploração em 3D com encontros visuais e visão isométrica, além de efeitos especiais de iluminação para criar sombras e reflexos. Esses aspectos foram destaque da edição 77 da Nintendo Power, e mais detalhes do jogo, caso tenha curiosidade, eu já apresentei em uma matéria para o Nintendo Blast de 25 anos de Super Mario RPG.
Esse foi um dos primeiros passos de uma longa jornada até o que chamamos hoje de HD-2D. Na geração seguinte de consoles, o PlayStation foi palco de uma série de notáveis façanhas gráficas de JRPGs da Square em misturar 2D com 3D e adicionar efeitos visuais. Podemos lembrar aqui de jogos como Xenogears (1998), que, sob a direção de arte de Yasuyuki Honne, contava com cenários bem mais detalhados em 3D, perspectiva de câmera (não mais isométrico, como era em Super Mario RPG), e personagens em 2D cujos sprites foram desenhados por Kunihiko Tanaka.
Algo parecido também ocorreu com a direção de arte de Hiroshi Minagawa para Final Fantasy Tactics (1997), trazendo rotação para sua jogabilidade de RPG tático, porém em visão isométrica. Em paralelo, vale lembrar, também havia outras empresas de JRPGs com estratégias gráficas semelhantes, como Persona 2, da Atlus, e Breath of Fire 4, da Capcom.

Da mesa para os portáteis
Na geração seguinte, a Square uniu-se à Enix, e o hibridismo entre 2D e 3D foi substituído por jogos quase ou totalmente em 3D em consoles de mesa, o que já era esperado, pois mesmo Xenogears — como o diretor disse em entrevista — já deveria ter sido assim, mas era muito mais difícil de isso se tornar realidade com as limitações do PlayStation. Contudo, o PlayStation 2 é muito mais poderoso, e casos emblemáticos dessa virada de estilo nas IPs da Enix e da Square foram os remakes em 3D de Dragon Quest V e de Romancing SaGa, o Dragon Quest V: Hand of the Heavenly Bride (2004) e o Romancing SaGa: Minstrel Song (2005). Por outro lado, no portátil da época, o GBA, a Square Enix optou por aperfeiçoar sua visão isométrica em pixel art em TRPGs, a exemplo de Final Fantasy Tactics Advance (2003) e Kingdom Hearts: Chain of Memories (2004).
Na sétima geração de consoles, em portáteis, alguns trabalhos da Square Enix seguiram as tendências do GBA, apenas melhorando o detalhamento dos cenários, as animações de quadros e os efeitos de luz. O resultado foram belos jogos isométricos, como, para PSP, os Star Ocean: First Departure (2007) e Second Evolution (2008), e, para DS, Final Fantasy Tactics A2: Grimoire of the Rift (2007), Valkyrie Profile: Covenant of the Plume (2008), alguns títulos da série Mana e remakes isométricos com câmera rotativa de Dragon Quest IV (2007), V (2008) e VI (2010).

Por outro lado, alguns trabalhos da Square Enix aproveitaram as novas capacidades de hardware do DS para aproximar suas produções daqueles dos consoles de mesa, desenvolvendo jogos com perspectiva 3D. Estou pensando em casos como dos remakes 3D de Final Fantasy III (2006) e IV (2007), Kingdom Hearts 358/2 Days (2009), de Final Fantasy: The 4 Heroes of Light (2009) e, claro, de Dragon Quest IX (2009), que foi talvez o pináculo desse tipo de desenvolvimento naquela geração de portáteis.
A essa altura, alguns dos jogos que mencionei já tinham alguns dos aspectos importantes para a tecnologia HD-2D, mas seus gráficos tinham baixa resolução, a qualidade de som era baixa também, em mid, a direção de som era pobre em espacialidade e efeitos sonoros, os personagens geralmente não tinham voz, os efeitos visuais mais sofisticados estavam ausentes, e nem sempre usava-se um design clássico de sprites para os personagens. Entretanto, em se mantendo o interesse do público de portátil por JRPGs clássicos, os ingredientes faltantes poderiam ser acrescentados com portáteis mais poderosos, e foi exatamente o que aconteceu, mas não ainda com o 3DS.

A origem do HD-2D
O Nintendo 3DS já tinha condições de suportar uma espécie de proto-HD-2D. Apesar de sua resolução ainda estar longe do HD, esse console já conseguia entregar títulos com efeitos visuais melhores, maior detalhamento de cenário em 3D com perspectiva e uma qualidade de som muito superior. Graças à parceria entre Square Enix e Nintendo, um título que avançou muito nesses aspectos foi Bravely Default (2012), que combinava uma performance audiovisual moderna com um gameplay que tinha uma personalidade própria e, ao mesmo tempo, muitas reminiscências dos JRPGs clássicos da empresa. Todavia, esse RPG não era focado em diferentes estilos de pixel art, os personagens não eram sprites e os efeitos de luz ainda eram incipientes.
No final da oitava geração, o sucessor híbrido da Nintendo, o qual herdara o público de fãs de JRPGs clássicos dos portáteis, foi a plataforma ideal para o advento do HD-2D. Contando com alguns dos desenvolvedores que trabalharam em Bravely Default e alguns outros jogos que mencionamos, Octopath Traveler (2018) trouxe, pela primeira vez, todos os quatro grupos de características que elencamos. Os sprites dos personagens tinham um design clássico, o resto do jogo tinha vários estilos de pixel art, cenários bem detalhados e iluminados, objetos 2D e 3D, alternância de câmeras fixas e rotação, perspetiva, uma excelente qualidade e variedade de som e música, além de uma exuberância de artifícios visuais, tais como de efeitos de partícula, blur, desfoque e Lens Flare.

Nesse contexto, a tecnologia HD-2D foi, por um lado, o aproveitamento de uma oportunidade de público (dos fãs de JRPGs clássicos dos portáteis) e publicadora (Nintendo) disposta a apoiar o projeto ao lado da Square Enix, mas, por outro lado, também a realização de uma visão artística única que nunca tinha sido executada, ao menos não na união de todos esses fatores. Havia jogos que misturavam 2D com 3D, mas ou o faziam em visão isométrica ou se afastavam do estilo clássico de sprites, e em nenhum caso havia aplicações de efeitos visuais mais sofisticados, e nem uma qualidade de som e música a altura.
O “Project Octopath Traveler” — como era chamado em 2017 —, de Tomoyo Asano e Masashi Takahashi, pretendia criar um encontro entre a alta qualidade audiovisual, a perspectiva de câmera e o gameplay de sua série Bravely Default e o design de clássicos JRPGs, levando em conta a pixel art e os hibridismos que haviam sido feitos em projetos prévios paralelos da Square Enix. A fórmula final de design — esboçada no primeiro tópico desta matéria — foi desenhada por Kota Oosaki e sua equipe, e a deslumbrante realização de arte de Octopath Traveler ficou por conta de Mika Iizuka e sua equipe de artistas.
A criação dessa fórmula, enquanto arranjo de elementos, foi algo único, mas não significa que foi abrupto, e nenhum de seus elementos surgiu aqui. Todos eles já existiam em títulos anteriores, porém, separados. Para que existissem unidos, na fórmula que hoje conhecemos por HD-2D, foi preciso um contexto propício, um console capaz de executá-la e uma visão artística para juntar esses elementos e criar a magia do HD-2D.

Nos vemos na Parte 2!
Quer saber como foi a história do estúdio que concebeu, projetou e vem desenvolvendo a tecnologia HD-2D? A próxima matéria dessa trilogia mostrará a interessante história que começa com um jovem game tester, amante de JRPGs, chamado Tomoyo Asano, e que termina com a consolidação de um dos mais importantes estúdios da Square Enix da atualidade.
- Parte 1: de Super Mario RPG a Octopath Traveler
- Parte 2: de Tomoya Asano ao Team Asano
- Parte 3: de Octopath Traveler ao futuro dos jogos HD-2D
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