
Desenvolvedor: Nikita Kryukov
Publicadora: Forever Entertainment S.A.
Data de lançamento: 11 de Novembro, 2022
Preço: R$ 39,99
Formato: Digital
Análise feita no Nintendo Switch com chave fornecida gentilmente pela Forever Entertainment S.A.
Revisão: Davi Dumont
Odiada pelos filistinos e superestimada em círculos pseudointelectuais, a abstração é uma ferramenta narrativa interessante, forte e variável. Aqueles que não desejam sair da zona de conforto com uma obra confusa tendem a preferir narrativas concretas, onde há um respeito grande à estrutura e à linguagem convencional. Contudo, muitos dos que tem uma familiaridade próxima com a arte acabam se encantando com a abstração ao ter seu primeiro contato com ela; é o primeiro Eraserhead, o primeiro Angel’s Egg, aquele primeiro contato com uma obra que não responde tudo de modo direto e prefere que você traga sua bagagem.
Hoje em dia, especialmente na área do cinema, há um questionamento da necessidade da abstração e da eficiência dela na linguagem. Diretores como Darren Aronofsky, do filme Mother! de 2017, recebem cada vez mais críticas por conta da linguagem convoluta e abstrata, onde tais críticos e espectadores questionam a necessidade desses artifícios para a comunicação simbólica e estética de seus filmes. Há até uma suspeita entre alguns desses espectadores, ditando que essa ferramenta narrativa é inserida nos filmes apenas para conseguir um escudo contra críticas; onde a falta de uma reação positiva à obra pode ser igualada injustamente à falta de compreensão da obra.
Entretanto, deve-se denotar que toda essa controversa da abstração artística deriva de uma simples característica dela: a relatividade implícita. Abstrações permitem que a obra aumente o grau de autorreflexão da história, preenchendo os vazios deixados em uma estrutura linguística com o seu próprio universo. A abstração acaba tornando a visão da obra mais vaga e as pessoas acabam tendo reações muito mais diversificadas sobre ela. Talvez essas atestações pareçam confusas quando expostas em meros parágrafos de texto, trazendo a demanda de exemplos práticos. Você conhece o que é o Teste de Rorsharch?
O Mundo do Solipsismo

O Teste de Rorscharch é um artifício usado por psicólogos no mundo todo para definir o perfil psicológico de seus pacientes. É nomeado a partir de seu criador, Hermann Rorscharch, e referenciado em toda a mídia popular; desde as inúmeras séries policiais, até a franquia de quadrinhos Watchmen. Sim, o antiherói mascarado de Alan Moore é uma referência relacionada à área da saúde mental — o que explica muito.
O teste se consiste na interpretação de diversas imagens, totalmente confusas, onde o psicólogo julga a percepção sobre elas e assim entende alguns dos traumas e inseguranças de seus pacientes. O que torna esse teste tão eficiente é justamente a capacidade do ser humano de projetar experiências conhecidas, emoções familiares e conceitos fundamentais do seu psicológico em algo que não é claro. Em tudo que é desconhecido.
Tudo que é abstrato vai seguir esse padrão, e quanto mais abstrato, menos apego à realidade concreta e compreensão lógica existirá. Assim, se denota que a lógica é uma linguagem mais objetiva e universal, e que o afastamento da mesma causa mais interpretação e subjetividade. E isso explica o motivo de certos filmes como O Poderoso Chefão terem um consenso de crítica e público tão fortes: são obras menos abstratas, com uma composição e estrutura mais acessível e universal. Entretanto, há sentimentos, experiências e estéticas que apenas o intenso uso da abstração vai conseguir retratar. A divergência de impressões é justamente uma das armas mais fortes que a abstração tem, e sua capacidade de criar sentimentos é verdadeiramente poderosa.

Como exemplo, temos o filme Alien, que ocultava a criatura propositalmente para que a mente do espectador preenchesse tal silhueta com sua própria interpretação. A ausência de explicação e exposição é um recurso frequente em horror, e um artifício muito poderoso para criar medo. Autores como Howard Philips Lovecraft e até jogos como LSD Simulator sabem do poder que a incompreensão, o desconhecido e o vago podem trazer.
Hoje, o assunto aqui do site, exposto pelo tonto escritor convidado (eu, Frost51 do canal Lixeira do Frost), é intrinsecamente conectado à abstração. Convido vocês à exploração de como a franquia Milk Inside a Bag of Milk foi do céu ao inferno, com base nesse mais recente (e sólido) port de Switch. Incluindo tanto o original, quanto a sua sequência Milk Outside a Bag of Milk, temos uma viagem que reflete muito forte a questão do abstrato e do concreto; isso, a partir da lente da ansiedade social e do trauma.
O Benefício da Dúvida

Milk Inside a Bag of Milk é um jogo de meia hora com uma enxurrada de críticas positivas. Vendido inicialmente bem barato na Steam, ele funciona como um capítulo introdutório para o jogo (supostamente) mais denso incluso do pacote — a sua sequência, Milk Outside a Bag of Milk, lançada no PC há uns anos atrás. Entretanto, não se engane: ele é o produto original do pacote e é uma obra totalmente coerente e fechada por si só; e pode acreditar, a experiência desse título é marcante o suficiente para justificar a popularidade da franquia.
A protagonista é uma garota que aparentemente tem problemas sérios com ansiedade. Sua visão da realidade se manifesta para nós na representação de um mundo fotorrealista, mas distorcido para o formato de pixel art. Há um aspecto abstrato em tudo que é visível, e a direção visual é extremamente peculiar e memorável.
Não controlamos ela, mas sim uma voz, aparentemente criada por remédios psiquiátricos. Apesar de lermos todos os pensamentos da menina, assumimos o controle de um “amigo imaginário” que ela criou em seu universo mental — um espectador que conversa e dá as dicas necessárias para que consiga cumprir seus objetivos diários. Seu objetivo? Ajudá-la a comprar leite em um mercadinho. O problema é que o inconveniente que a sua ansiedade, hipersensibilidade e especialmente fobia social trazem são os seus oponentes dessa vez.

Considerando a recente situação da pandemia, eu poderia elaborar muito sobre como o jogo retrata detalhadamente a experiência da fobia social. Desenvolvi um pouco de fobia social durante o período da pandemia — especialmente por conta de um trauma pessoal, potencializado por um período grande de isolação. Enquanto de modo algum foi uma experiência debilitadora, o desconforto crescente em estar fora de casa definiu a experiência. Entretanto, eu sinto que esse é um tema relativamente bem representado na mídia como um todo, especialmente no nicho das visual novels. Jogos como Wonderful Everyday e Higurashi When They Cry já abordaram temas similares com maestria e sinto que não é exatamente por abordar esse tópico que esse jogo se destaca. O que diferencia Milk Inside a Bag of Milk dentro de seu nicho é a direção estética poderosa.
É impossível de dizer com palavras o quão desconfortável a atmosfera da obra é. A junção de fotorrealismo com uma abstração confusa torna a experiência absolutamente desorientadora. O aspecto que mais me tocou, foi o quanto o jogo parece compartilhar de uma narrativa que quer parecer familiar para você, mas também não esquece de ter sua própria estrutura e história. Se sente como um reflexo das inseguranças que temos durante o convívio social, e o fato que o jogo pede as vezes para você escrever diretamente respostas para a protagonista torna isso muito mais imersivo. Tem até uma parte que o jogo apresenta uma imagem indecifrável e pergunta o que você vê, basicamente aplicando um Teste de Rorschach no jogador. Eu vi imagens que se relacionavam mais com os meus traumas do que a imagem real que a protagonista queria ver, e acho interessante o modo que o jogo denota essa questão da interpretação pessoal durante a experiência toda.

30 minutos, mas 30 minutos bem gastos. Repetir o jogo para achar mais finais aumentou um pouco o tempo, mas não há um conteúdo tão extenso — exceto por algumas variações finais pequenas e os finais ruins ocasionais. Ainda vale a pena vivenciar as mudanças de cada escolha por completo por conta de como elas implicam muito sobre o estado mental da protagonista, pois somos bombardeados de opções que podem julgar ela cruelmente pelos próprios problemas mentais — um reflexo do sentimento da culpa injusta que ela sente por ser diferente.
O único grande problema aqui, é o fato que você vai acidentalmente confirmar algumas opções sem querer, por conta de não ter um intervalo de segurança na hora que a janela de escolhas aparece. Isso significa que você pode apertar o botão muito cedo por conta da sua velocidade de leitura rápida, e escolher algo sem querer. É um erro que nem visual novel antiga fazia, e é bem frustrante. Ainda assim, talvez a coisa que mais vá incomodar o leitor mais ávido é que o jogo se sente mais como um experimento estético curto do que necessariamente uma trabalho artístico muito calculado — e isso é ok. Sinto que o jogo acaba justamente em uma crescente e se finaliza satisfatoriamente. Não precisa ser estendido e a sua contenção é apreciada.

Entretanto, é compreensível que os jogadores queiram mais. É uma experiência curtíssima mas muito evocativa, e o potencial que a expansão desse conceito pode ter nas mãos do criador, que tem uma visão artística tão singular, é imenso. Demanda criada, e assim começa a produção do segundo jogo.
O Malefício da Certeza

Milk Outside a Bag of Milk, de começo, já abandona a abstração confusa do primeiro. No lugar de bombardear o jogador com sons e visuais desconfortáveis, começa com uma cutscene animada até que bem feita. Evoca claramente duas referências de anime bem específicas: Neon Genesis Evangelion e Serial Experiments Lain. Enquanto a qualidade da animação em si vai agradar qualquer fã do primeiro jogo, eu notei que algo se perdeu de cara: a margem interpretativa do seu antecessor desapareceu aqui.
As imagens não eram mais abstratas, e a clareza visual remetia às animações japonesas. Enquanto o estilo visual do primeiro tinha sim inspirações claras em animes, existia ali uma negação ao tão característico traço limpo dessa mídia. Enquanto há várias obras dentro do nicho com horror de qualidade, sinto que a limpeza visual utilizada não beneficia a imersão no horror psicológico proposto. O jogo não é mais uma visual novel comum, e tenta emular um pouco a jogabilidade de point and click antigo; algo que não muda tanto o ritmo do jogo, mas cria alguns problemas de game design. Especialmente em relação à comunicação de como algumas escolhas podem impactar a narrativa.

Sabe o aspecto Rorschach? Aquela questão de tudo no primeiro jogo abusar da abstração para refletir o nosso “eu” interior? Aqui não existe. No lugar disso, vemos uma tentativa de vender a protagonista como uma espécie de Ame do recente indie Needy Girl Overdose. O problema é, ao contrário desse recente título de sucesso, o jogo não tem tempo o suficiente para desenvolver essa história surreal de drama e enriquecer a experiência do primeiro jogo. A menina é carismática e dessa vez vemos sprites polidos dela, representando as suas emoções. A sensação está longe de ser a imersão na cabeça de alguém com problemas, mas sim: como se você namorasse alguém que sofresse com esses problemas. A ideia é boa, mas a execução com certeza se beneficiaria de mais desenvolvimento.
Eles até tentam engatar um arco narrativo relacionado ao isolamento da garota ter se estendido ao meio digital por conta de um assédio feito por um antigo amigo na internet, mas esse arco não chega nem próximo do quanto o trauma familiar dela foi bem explorado no título original. O primeiro jogo era comedido: proposta simples, execução ótima. O segundo promete muito e não entrega nada, exceto o polimento visual que mostra um crescimento no orçamento — mas uma falta de noção no que tornava aquela curtíssima primeira experiência tão especial.

E, para adicionar algumas horas, existem alguns finais alternativos. Apesar de não mudarem muito a estrutura geral da narrativa, trazem cenas diferentes que expõem um pouco mais do inferno subjetivo da protagonista. Algumas delas são legitimamente muito boas e até agregam em brechas que já existiam no primeiro jogo, outras são metáforas visuais óbvias feitas para jovens teorizarem sobre as especificidades desnecessárias. Um dos principais problemas é de design: você vai repetir MUITO o mesmo jogo, que agora é mais longo, para conseguir ver todas as cenas — e eu não sei se elas compensam esse esforço, me criando a dúvida se essa estrutura realmente foi funcional. Além disso, o problema dessa história é: aqui, tudo se sente manjado. A impressão que tenho é que a maturidade narrativa do primeiro sumiu, e foi tomada por uma tentativa fracassada de emular a atmosfera alienadora de Serial Experiments Lain. Ao menos, a trilha sonora é muito boa e a direção de arte encanta. Pena, entretanto, que a palavra que usei para caracterizar a direção de arte não foi “espanta”.

Está longe de ser uma obra ruim, mas definitivamente precisa de muita força para ser mais do que um jogo juvenil. Seu antecessor era consciente de sua ideia simples e mirou baixo, em uma execução pragmática; com uma estética simples, mas única e impressionantemente forte. Milk Outside a Bag of Milk cometeu o pecado de Ícaro: mirou aos céus, quis ser drama, quis vender uma waifu, quis criar horror, quis exalar beleza e quis expressar sujeira ao mesmo tempo. Acabou que não focou em nada e o sol derreteu suas asas. Qualquer horror interessante é contraposto por um traço limpo e tradicional, e qualquer momento de beleza dramática é cortada por partes que tentam ser avant-garde. Ao contrário do primeiro jogo, trouxe a impressão de ser a primeira tentativa de um adolescente de brincar com surrealismo. Pena que esse surrealismo não entende o benefício da abstração, e te afunda em mar artístico de elementos claros, familiares e óbvios. Ao contrário do primeiro jogo, esse jogo não é sobre você (e todos aqueles que sofrem com ansiedade), é sobre a denpa e-girl que eles querem vender; e eles querem que o cânone dela seja bem direto e explicado. Assim, se perde todo o charme que a franquia tinha para mim.

E não, eu nem estou reclamando sobre fazer um jogo que se baseia, em algum nível, na venda de uma personagem carismática para ter mais popularidade. O problema é justamente que eles não conseguem vender ela bem o suficiente, não convencem com o drama dela e até falham em criar um arco narrativo impactante — enquanto ficam indecisos entre tornar isso uma experiência experimental e subjetiva ou uma experiência concreta de uma garota carismática.
É assustador o quanto o final de Milk Outside the Bag of Milk é seco em relação ao original. Apesar de eu apreciar um pouco da sensibilidade cinematográfica russa presente nesse jogo, foi uma grande decepção ver que o primeiro, com menos recurso e tempo, me marcou muito mais.

Nem Tudo Precisa de uma Sequência

O famoso diretor russo Andrei Tarkovsky tem esse curta chamado O Violino e o Rolo Compressor. Apesar de ser uma de suas primeiras obras, demonstra o dilema simples de um jovem criativo e idiossincrático resistindo à sua realidade opressora. Acaba por adotar a figura paterna de um pedreiro próximo, que incentivava a criança muito mais que qualquer um. O filme é muito eficiente em sensação, refletindo bastante aquelas memórias que temos — de pessoas que não tivemos a oportunidade de conhecer direito, mas fizeram a diferença nas nossas vidas com ações pequenas. Aquela melancolia, de nunca ter ido atrás e conhecido esses indivíduos, tão importantes para nós.
É uma arte comedida e eficiente. Muito poderosa, com um conceito simples e bem elaborado em um curto período de tempo. Ela não precisa se estender, e ela sabe disso. Infelizmente, é uma consciência que Milk Inside a Bag of Milk não teve ao anunciar uma sequência. Enquanto eu ainda veria salvação (e até uma obra individualmente interessante) se o investimento fosse em tornar o arco da personagem mais dramático, os elementos mais carismáticos da nova direção de arte acabam se tornando um empecilho para a experiência suja e assustadora do jogo original. A confusa falta de direção é refletida em sua narrativa seca, que fracassa em ser abstrata, e fracassa em ser concreta.
É um port bom, nada substancial para reclamar. Pena que eu não sinto que é uma franquia que condiz com a recepção explosiva que ela teve. São jogos simples e legais, mas o segundo com certeza deixa muito a desejar. Não precisava existir, não agregou em nada e com certeza sua camada de fetichismo em neuro-atipicidades não complementou na responsável e assustadora discussão que o original trazia.
Se gostou desse jogo, recomendo bastante o jogo de celular Alter Ego. Apesar da plataforma não ser exatamente a mais bem aceita entre jogadores hardcore — lhe garanto que esse, apesar de aderir ao modelo grátis com microtransações, não te fará pagar um centavo. Na verdade, é grátis e incrível: uma experiência que lhe traz a a escrita de personagem que o segundo jogo dessa série tentou realizar com a protagonista; mas aqui, a decisão é efetiva e contribui com os temas e a proposta da obra. Deixo explícito também que não há um pingo de má fé nessa análise, e que fico curioso com os próximos trabalhos do desenvolvedor Nikita Kryukov. Apesar do segundo jogo ter me decepcionado, seu estilo excêntrico é interessante e creio que ele ainda tem muito o que expor de interessante ao universo dos videogames.

Prós
- Direção estética impecável.
- Port polido.
- Interessantemente experimental.
- Identidade e execução muito únicas.
- Disponível em português.
Contras
- A sequência é decepcionante.
- Narrativa do segundo jogo tropeça.
- Pretensioso e juvenil.