No mundo em que vivemos existem correntes imaginárias, que nos prendem e nos impedem de enxergar a realidade. Essas correntes, no entanto, nos tiram o poder de ação e nos impõe certa subserviência sem que percebamos que somos apenas uma pequena engrenagem que mantém a máquina sistêmica funcionando em prol dos interesses de uma minoria privilegiada.
A construção de artifícios retóricos que dissimulam a realidade é chamado de “ideologia”. Segundo Marilena Chauí, a ideologia é um ideário histórico, social e político que oculta a realidade como forma de “assegurar e manter a exploração econômica, a desigualdade social e a dominação política” (CHAUÍ, p. 7).
Há uma espécie de mecanismo que age nas pessoas quase de forma inconsciente, que nos levam a tentar consertar aspectos de nossa vida material ou sentimental. Se nos deparamos, em nossa casa, com uma torneira quebrada, por exemplo, nossa ação mais imediata nos levará a buscar o seu reparo. Se uma parede estiver rachada, tentaremos rebocar, jogar massa e pintar. Mas, e se o problema na torneira for na tubulação que fica omitida aos nossos olhos? E se um quadro esconder a rachadura da parede? Como nós iríamos tentar corrigir algo que não percebemos? É mais ou menos assim que a ideologia funciona.
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Tentando mudar a sociedade
Se não temos uma percepção ampla sobre a nossa realidade, nossas ações se turvam diante do véu que a esconde. O JRPG da ATLUS, Persona 5, levanta uma série de debates sobre certa omissão ou passividade da sociedade ante a alguns aspectos da vida cotidiana. Como se valores éticos e morais, junto da nossa própria percepção da realidade, se dobrassem frente às vontades de pessoas que exercem poder na sociedade.
Logo no início, nosso personagem — um estudante secundarista — é preso injustamente, ao tentar proteger uma menina que estava sendo assediada na rua. Mais pra frente descobrimos que o assediador era um renomado político japonês de nome Masayoshi Shido. Na história, ninguém (nem mesmo sua família) se privou de marginalizá-lo e abonar a conduta do político.
Nos deparamos com vários exemplos de desvios éticos e morais, em Persona 5: na escola, o assédio moral e sexual do professor de Educação Física, Suguru Kamoshida — tolerado por boa parte da comunidade escolar — quase provocou a morte de uma das assediadas, na medida que ela tentou o suicídio.
O sucesso de uma rede de fast food abrandava a relação tóxica do burguês Kunizaku Okumura com seus empregados. Ele os desumanizava e tratava-os apenas como uma ferramenta para o trabalho. Seguindo a máxima de que “o futuro estaria nas mãos dos nossos jovens”, é justamente um grupo de estudantes, marginalizados e sofrendo a violência daquele mundo, que passam a enxergar para além do véu que turva olhares para mudar minimamente a sua realidade.
A ação dos Phantom Thieves
Mas, pessoas igual ao político corrupto e inescrupuloso, igual ao professor assediador ou o burguês explorador, existem vários. A nossa sociedade muitas das vezes forjam novos algozes. Somos educados para a disputa, para o “eu” acima do “nós”, e isso faz com que muitos — parafraseando Paulo Freire — sonhem não com sua libertação, mas com o seu momento como novo opressor.
As ações dos jovens Phantom Thieves, nesse sentido, são pontuais, mas não agem na raiz do problema. Somos nada mais do que o resultado do meio cultural do qual fomos socializados. Não só a síntese dessas relações, “mas também da história dessas relações, isto é, o resumo de todo o passado” (GRAMSCI, p. 40). Essa é uma força invisível que age em prol daqueles que exercem controle político e econômico.
Ao longo de toda jornada a imoralidade dos personagens é tratada como uma espécie de distúrbio psicológico de uma mente que distorce a realidade. Os membros do Phantom Thieves, nesse sentido, são capazes de invadir as mentes distorcidas que são simbolizadas por Palácios. A raiz do distúrbio é simbolizada por um tesouro/coração. Uma vez roubado o coração o indivíduo seria recuperado. Os jovens heróis acreditam no poder transformador da ação. No entanto, no Palácio de Masayoshi Shido — o político corrupto acima citado e que, na história, também estava concorrendo ao cargo de Primeiro-Ministro do Japão — mesmo após o roubo de seu tesouro/coração e uma confissão pública de seus crimes, absolutamente nada acontece a ele.
A transformação do real
A ação não surte efeito sem consciência e uma real percepção das contradições sociais. E é essa permissividade da sociedade que, embriagada pelo discurso ideológico, frustra os heróis, fazendo-os pensar em algo mais drástico: mudar a visão de todos acerca da realidade.
Apenas nesse último Palácio, diante da nulidade de sua luta, é que eles finalmente percebem que não há mudança sem transformação. Para Antonio Gramsci, essa transformação é um processo dialético envolvendo a destruição da sociedade burguesa e a construção de uma nova sociedade. Ela deve ser “percebida como um processo global que se faz simultaneamente no terreno econômico e ideológico, através da luta política” (Ver AGUIAR)
Após concluirmos o Palácio de Kamoshida, de forma bem desinteressada, somos apresentados a um mundo psíquico (Metaverso), que possui uma estrutura exploratória procedural, chamado de Mementos. É algo muito próximo das dungeons dos outros jogos da franquia e que aqui serve tanto para aprofundar a história do personagem Morgana, como “grindar” experiência, dinheiro e itens. Esse local, no entanto, representa também a mente compartilhada de toda a humanidade. Dessa forma, podemos interpretar que o roubo do tesouro de Mementos, pelos Phantom Thieves, representa uma luta contra as correntes ideológicas que mascaram a realidade e que impediam a percepção das contradições sociais.
Libertação das amarras ideológicas
Gramsci acreditava que a compreensão crítica de si mesmo é obtida “através de uma luta de ‘hegemonias’ políticas de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real” (GRAMSCI, p. 21). Apesar de concluir a história de Persona 5, a luta em Mementos não se encerra em si mesma. Apenas pavimenta um caminho para algo maior em comparação a missão original dos Phantom Thieves. Afinal, o início de uma transformação social que pode revolucionar a sociedade, é uma ação coletiva que tem como ponto de partida a conscientização de nosso papel no mundo e a libertação das amarras ideológicas impostas pelos donos do poder.
AGUIAR, Letícia Carneiro. Intelectuais e Revolução Cultural no Pensamento de Antonio Gramsci.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia?
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História.