
Revisão: Lucas Barreto
Em NieR: Automata, jogo desenvolvido pela PlatinumGames e publicado pela Square Enix em 2017, somos apresentados a um mundo distópico dominado por androides e robôs. Na trama, uma raça alienígena teria chegado à Terra e tenta dominá-la utilizando robôs, dos mais diversos, como arma. A raça humana, exilada – a princípio – na lua, cria uma linha de defesa através da organização YoRHa, composta por androides que entram em conflito com os robôs alienígenas. Durante a campanha, alternamos o gameplay entre três integrantes da YoRHa: 2B, 9S e (a desgarrada) A2.
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Aviso! Este texto contém spoilers.
Mimetização do comportamento humano

Em certo momento do título, somos apresentados a alguns robôs que se desligaram da rede que os mantinham alinhados em sua programação original. Esses robôs, ao se conectarem com a internet, passaram a absorver muito do conhecimento humano e, na tentativa de darem um novo sentido às suas vidas (uma nova programação), passaram a replicar — com todas as falhas — os comportamentos humanos. Eles amam, odeiam, guerreiam, se divertem e sentem medo. São estabelecidas relações de amizade, de família e de culto religioso. Sistemas políticos, como o monárquico e a ideia do direito divino dos reis, são recriados. Filósofos renomados são homenageados. A raça humana “exilada” respira pela emulação replicada por eles.
A mimetização do comportamento humano por parte dos robôs aliens é representada por uma análise documental fria que eles fazem das fontes que se encontravam arquivadas na internet. Não há distinção entre ficção e realidade. As comunidades robóticas da floresta — que emulam o sistema monárquico — e adoram curiosamente um “bebê robô”, por exemplo, parecem representar uma fábula medievalista, aos moldes do Rei Arthur. Falta historicidade a essas máquinas, na medida que não há um filtro acerca da realidade histórica. E é justamente isso que nos permite distinguir um fato histórico da ficção.
Portanto, um grande ponto de reflexão do jogo gira em torno da ideia de humanidade. Em vários momentos, o androide YoRHa 9S destrói máquinas, que estão mimetizando sentimento de medo ou outras dinâmicas sociais típicas da humanidade, sem piedade, aos gritos de que eles não seriam humanos. Mas, afinal, o que é ser humano? Para alguns, nossa capacidade de agir, pensar, produzir conhecimento e transmiti-lo para as gerações futuras é singular e joga luz para essa pergunta. No jogo, o personagem Pascal, por exemplo, transmite o conhecimento aprendido para os outros robôs de sua pacífica vila (uma espécie de comunidade coletivista).
Revisitar o passado para compreender o presente

Para o historiador medievalista da escola francesa dos Annales, Marc Bloch, a História, entendida como o estudo das realizações humanas ao longo do tempo, serve a um propósito, que é interpretar os fatos passados para compreender, minimamente, o tempo presente. Para ele, a “incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”, porém completa que “talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada sabe do presente” (BLOCH, p. 65).
Grosso modo, somos o resultado dos erros e acertos de homens e mulheres que passaram por esse mundo antes da gente. A falta de certo senso histórico, nesse sentido, afeta nossa percepção da realidade e joga nas sombras as contradições que movem a sociedade, tornando-os pacientes da História e não o motor que a impulsiona. Desde a consolidação da sociedade burguesa, no entanto, aparatos ideológicos foram construídos para dissimular nossa percepção da realidade.
Tal qual na História, a ideologia mascara a realidade vivida pelos personagens de NieR: Automata. Há, nesse sentido, uma espécie de relação de poder, em que o jogador sob a ótica dos personagens do jogo tem uma percepção bem limitada de tudo que está acontecendo. Para compreender toda a sua nuance temos que revisitar a campanha várias e várias vezes. A cada “conclusão” da história mais o véu que esconde a real trama do jogo vai se revelando aos olhos do jogador. Como se revisitar o passado — tal qual Marc Bloch aponta — fosse a única forma de se compreender plenamente o presente.
A História se repete

Em “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx começa a obra citando um pensamento de Hegel de que “todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer duas vezes”. Marx, no entanto, pontua que o filósofo havia se esquecido de acrescentar que “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” (Ver, MARX). O fascínio dos robôs de NieR pela história e cultura humana me levaram para esse célebre pensamento do filósofo alemão. Pois, tal qual os seres humanos, as máquinas não conseguem aprender com os seus erros e repetem, ciclo após ciclo, a farsa montada que os mantém subservientes àquela realidade. Como se a nova “programação” os guiasse pelo mesmo destino da humanidade.
A nossa História é cercada por acontecimentos trágicos que acabam abalando as estruturas da sociedade, dando início a uma nova realidade. Essas mudanças são pautadas, quase que univocamente, através da violência. Violência essa que é evocada para manter o status quo dos novos donos do poder. Mas ela, seja física ou simbólica, é mascarada pela ideologia. Nesse sentido, discursos retóricos são criados para dar a ela sustentabilidade. A dinâmica dos androides da YoRHa consiste na repetição de uma farsa com o intuito de manter intacta uma ordem estabelecida. Para me aprofundar ainda mais nesse ponto, infelizmente, eu teria que descrever mais sobre a história do jogo, estragando as surpresas do enredo.
Para Carlo Ginzburg, “todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam (…) a imagem total que uma sociedade deixa de si” (GINZBURG, p. 43). Os androides da YoRHa compreendem parcialmente a sua realidade e agem de acordo com os argumentos retóricos que deram sentido à sua existência. Muitas vezes o androide 9S questiona algumas ordens que recebe e a informação — taxada de confidencial — lhe é negada. As vendas nos olhos dos androides — a revelia do que o roteiro estabelece — pode ser interpretada como uma metáfora à ideia de justiça ou a necessidade de uma devoção cega à cadeia de comando.
Um convite à reflexão
Como uma obra ficcional é no mínimo interessante ver os discursos que sustentam o roteiro de NieR: Automata, abrindo brecha para diversos paralelos e debates acerca do próprio comportamento humano. Afinal, onde inicia e encerra a humanidade? Talvez seja isso que Yoko Taro, diretor do jogo, deseja discutir. Há, nas manifestações artísticas, a concretização de uma ideia ou certa expressão de nossa própria subjetividade. E o eterno embate entre androides e robôs, em NieR, parece um convite à reflexão sobre nossas ações e a nossa própria existência.
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova.
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
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